Confira a crônica inédita e exclusiva de Rubem Fonseca para os leitores do Portal Literal.
Cinismo
Rubem Fonseca
A semântica, que estuda o significado das palavras, me lembra Janus, que segundo a mitologia era o porteiro celestial. Ele possuía duas cabeças, simbolizando os términos e os começos, o passado e o futuro, o dualismo relativo de todas as coisas. A semântica também têm duas cabeças, uma sincrônica, que fala de palavras com o mesmo significado ao mesmo tempo, e outra diacrônica, que estuda a modificação das palavras ao longo do tempo.
Vejamos a palavra cínico. Ela deriva da palavra grega kŷ;;ő;;n, kynós, que significa “cão”, animal cuja vida seria igual à pregada pelos cínicos, pois morde aqueles que merecem, é capaz de distinguir os amigos dos inimigos, e principalmente, o cínico é capaz de viver como o cão, indiferente às convenções sociais. (Os cães daquela época deviam ser diferentes dos atuais “cachorrinhos de madame” que viajam com elas para Paris dentro de bolsas Louis Vuitton). Hoje, através de desvios diacrônicos, este termo se refere àquelas pessoas desavergonhadas, impudentes; que desdenham dos escrúpulos alheios, que se mostram atrevidos ou descarados ao seguir seus impulsos ou interesses, uma pessoa, conforme a definição de H.L. Mencken, que quando cheira uma flor olha ao redor procurando o caixão do defunto.
Como todos sabem, o cinismo foi uma corrente filosófica fundada por Antístenes, um discípulo de Sócrates. O mais famoso dos cínicos se chamava Diógenes, o sujeito que ficava dentro de um tonel, ou vaso funerário, que durante o dia vagueava com uma lanterna acesa a procurar homens virtuosos. Uma história famosa dele é a de que certo dia, quando estava tomando sol, chegou inesperadamente o todo poderoso imperador Alexandre Magno e lhe disse: “Pede-me o que quiseres” e Diógenes lhe respondeu: “Desejo apenas que te afastes do meu sol e não me faças sombras.”
Perguntaram a Platão que tipo de homem era Diógenes e Platão respondeu: “Um Sócrates que ficou maluco”. Por falar em maluco, Nietzsche disse que "o cinismo é a única forma sob a qual as almas vulgares se aproximam do que seja a honestidade.”
Mas afinal, qual a filosofia dos cínicos? Os antigos, da época de Antístenes, pregavam o desapego aos bens materiais e externos, a rejeição à hipocrisia, e estabeleciam uma correlação entre conhecimento e virtude, virtude que consiste, sobretudo, na conduta moral do ser humano, naquilo que lhe é intrínseco – e não nas conquistas materiais. Exatamente o oposto do significado da palavra em nossos dias.
E os filósofos cínicos modernos? Peter Sloterdijk, autor do cultuado Crítica da razão cínica, foi há alguns anos o pivô de uma briga que dividiu a intelectualidade européia. Sloterdijk propôs um Conselho de cientistas e filósofos para criar um discutível “Parque Genético Humano” – “Menschenpark”, para salvar a espécie da imbecilidade e brutalização induzida pelas mídias. O famoso filósofo alemão Jürgen Habermas atacou Sloterdijk e um monte de filósofos se meteu no meio, confundindo mais do que esclarecendo.
Onde se encontram os cínicos autenticamente seguidores de Diógenes?, pergunta o filósofo Michel Onfray, onde se aninham os descendentes do filósofo do cão? Primeiramente entre os filhos de Nietzsche, que, como sabemos, morreu louco. E os outros, quem são eles? Entre os mais recentes Michel Foucault e Gilles Deleuze, “que morderam feito cães, cagaram e mijaram nas falsas aparências da época, levantaram as patas diante das honrarias e dos poderes.”
Mas eles, os cínicos autênticos, existem entre as pessoas simples, “pode ser qualquer um que se sinta revoltado e animado por uma vontade política de acabar com os cínicos vulgares, aqueles que querem vender um amanhã ideal para fazer engolir o hoje insuportável. Sua insubordinação, sua rebelião, sua revolta, sua reinvindicação reatualizam o gesto de Diógenes.”
Todavia, os cínicos autênticos, em sua maioria, não sabem que são cínicos. Eles desafiam as falsas convenções sociais e a moralidade hipócrita, mas não sabem que isto é um cinismo genuíno. Lamentavelmente, a palavra cinismo, para eles, sofreu a diacronia semântica e passou a ter um significado pejorativo.
Esta conversa está ficando muito filosófica, e chata. Vamos voltar à diacronia da semântica.
Um instrumento de tortura denominado “tripalium” com o passar dos anos tornou-se a palavra “trabalho”. (Sei que para muitos “trabalho” continua sendo uma forma de tortura.) Todos aqueles que têm computador conhecem a palavra inglesa “delete”, que significa apagar. É uma demonstração de como as palavras se movimentam no tempo e no espaço. O verbo delete vem do latim delere (apagar). Agora, no século 21, a palavra, migrando do inglês, reaparece em português no seu sentido original, deletar, devidamente integrada ao nosso vernáculo. A palavra estilo, do latim stilum, designava originalmente uma pequena haste usada para escrever, um tipo de caneta antiga. Não demorou para que surgisse um novo sentido para a palavra, ou seja, a “maneira de escrever” — “o estilo literário dos escritores”, como também o conjunto de tendências e formas de comportamento, além de significar requinte, habilidade esportiva, etc. A palavra avião, do francês “avion”, significava ave grande; quando foi inventado um aparelho com asas que voava, qual o nome que lhe foi dado? Avião. A palavra “tela” indicava (e ainda indica) um tipo de tecido; quando o cinema foi inventado, as imagens eram projetadas num retângulo deste tecido. Surgiu então a palavra tela ligada à imagem com o seu sentido puramente cinematográfico. A metáfora também influência as mudanças das palavras. Para não ter que usar palavras vulgares a fim de denominar órgãos genitais e excretores, (por exemplo, em português, boceta e cu), passou-se a usar vagina e ânus, oriundas das palavras latinas “vagina” e “anulus”, que significavam respectivamente vagenzinha e anelzinho.
Porém, a nossa discussão sobre a mudança de significados das palavras tem que passar pela semântica, pela metonímia e pela metáfora. Eu costumo dizer que a superioridade da literatura sobre todas as artes resulta da sua polissemia mais rica, isto é, a sua capacidade de ter muitos significados. O leitor, à medida que lê, recria a história, usa a sua imaginação. Isso é impossível olhando para a “tela”.
Mas vou deixar este assunto para outra ocasião.
Voltando ao cinismo. Você é um cínico autêntico, seguidor, ainda que inconsciente, do Diógenes, ou é um cínico que faz parte da outra categoria?
http://portalliteral.terra.com.br/artigos/pensamentos-imperfeitos-rubem-fonseca-inedito
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